quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A boba

Era bem assim - com um vestido de algodão leve e um sorriso impossível de disfarçar que J. caminhava pelo mundo. Seu bom humor fazia brilharem todos os dentes. Não sorria amarelo e nem com o canto da boca. Sua alegria entrevia-se inteira. Ela plantava contentamentos aqui e ali. Aprendeu a duras penas a não levar a vida tão a sério. Quando descobriu o quanto era bom rir de si mesma passou a ser uma das raras pessoas felizes do planeta. Para o mundo se fingia de séria. Não podia deixar que a confundissem com uma inocente, e a tentassem fazer de boba. Leve daquele jeito, só mesmo para os íntimos. Para aqueles que sabiam que sua bobice tinha, na verdade, muita sabedoria. Ainda que a vida lhe impusesse algum calafrio, medos inevitáveis, rir era a sua estratégia para se defender do mundo. Desse mundo tão sem graça... Seu sorriso escancarado era a grande e definitiva arma encontrada. Boba? Estava era salva!

A estrangeira

F. mora em seu próprio exílio. Ela vive do lado de dentro. É a solidão feita de gente. A vida passa e ela assiste da arquibancada. Vida dela tão vazia que parece um estádio depois de jogo de segunda divisão. Para passar o tempo ela coleciona cartões-postais dos lugares -tão bonitos - que nunca visitou, chora com os tristes fados que tocam na vitrola que era do avô, vive histórias de amor através das novelas que passam na TV e assiste a vida dos vizinhos pela janela, que ela abre só um pouquinho. Vai que em um descuido ao escancará-la, alguém resolve olhar para a dela? Vida essa que ela gasta tão pouco. Talvez esteja economizando para uma próxima... Ela tem mania de se confundir com os personagens dos filmes que assiste. Sente gozos e tormentos através dos Joões e Marias que vivem nos livros de sua prateleira, alimentando assim sua pouca fome de vida. Os filhos dos vizinhos crescem, casais de namorados se formam e se desfazem, o céu muda do azul para o cinza e F. não sai da janela. Não há soluções para o seu vazio: ela perdeu o último trem. Chegou atrasada para a própria vida.

A falta que ela faz

Aquela moça sentia uma falta aguda que lhe martelava o peito. Sentia falta dela mesma. Como um segredo bem guardado, se guardava do mundo. Escondia-se de tal modo que era capaz de nem se lembrar mais quem ela era. Esse segredo emprestava-lhe uma incongruente segurança. Possuía uma aparência era perturbadora: olhos oblíquos ligeiramente estrábicos, que se recusavam a olhar diretamente nos olhos das outras pessoas, e maçãs salientes, que coravam com facilidade. No porta-retrato da sala de estar os olhos verdes saltavam à vista das visitas. Aquela não era parecida com ela. Na foto ela não tinha segredos tão insondáveis. Parecia até serena. Mas seu espírito era tempestuoso. Aquela fotografia não era capaz de capturar toda a dramaticidade da sua vida. Fingia ser parecida com a maioria das pessoas. Afinal não se pode ser diferente impunemente. Não seria tão despudorada assim. Disfarçava seu desmedido desconsolo. Vagava pela vida carregando-se de estranhamento e solidão, sofrendo emoções que ainda não tinham nome. Sentia imensa saudade de si, mas tal saudade era sublimada pelo pudor de mostrar para o mundo quem ela verdadeiramente era. O tempo todo para ela faltava...ela!

A mãe e seu filho

O filho achava que a mãe tinha resposta para todas as perguntas. Afinal para ser mãe era preciso ter todas as respostas. Mal sabia que era ele quem lhe ensinava. A mãe se renovava nele. Ele mostrava a ela como ser mãe. Descobria que ser mãe era sentir dor e alegria ao mesmo tempo. Ela precisava ajudá-lo a aprender a andar de bicicleta. E ele deveria lhe segredar a sua espontaneidade tão natural. Iam bordando suas existências entrelaçadas. De uma hora para a outra o filho cresceu. Sem aviso-prévio. Um dia foi dormir criança e no outro acordou adolescente. A mãe já não podia entrar no seu quarto sem bater. O menino, que conservava uma certa timidez, se tornou um jovem exibido. Ansiava por atender a todos os chamados da urgente adolescência. Tinha pressa em viver. Queria estar em todos os lugares ao mesmo tempo. A primeira espinha, o primeiro trago, o primeiro amor... A primeira mentira desmascarada. Jurava por Deus que não se repetiria para tornar a mentir mais uma vez. Vivia um tempo de estreias: beijar era novidade, beber era novidade, transar era novidade... A vida adulta se descortinava para ele. A mãe experimentava mais uma vez a juventude deixada há tempos para trás e secretamente perdoava os deslizes do filho. O bordado ganhava cores novas.

A mulher com um buraco no meio

A felicidade para ela era apenas uma vaga promessa. Uma vã ilusão. Vivia à procura de pequenas alegrias. Mas tinha nascido fadada à melancolia. Havia um enorme vazio dentro de si. Passava a vida tentando preencher esse vazio. Mas era um buraco sem fundo. Algumas vezes chegou perto de encontrar satisfação. Todavia quanto mais perto chegava, mais a satisfação lhe escapava. Era intangível e inatingível essa tal da felicidade. Ficava boba de ver como os outros encontravam contentamento em pequenas coisas. A melancolia era sua mais constante companheira. E por já tão conhecida sentia-se protegida por ela. A alegria a assustava muito mais. Era-lhe irrepreensível. Temia arriscar tanto por um bocado de contentamento. A busca pela satisfação tornou-se um vício que esvanecia aos pouquinhos. Essa agitação íntima trazida pela felicidade a deixava insegura. Nunca mais tinha sido tão feliz quanto fora na infância, quando as alegrias eram gratuitas e o peso da vida ainda não se fazia presente.

A mulher que matou Deus

Desde pequena a mulher escutava as mesmas ladainhas: “Deus está vendo tudo que você está fazendo”, “seja uma menina comportada senão Deus castiga”, Deus isso, Deus aquilo... Fora criada em uma família católica, apostólica, romana. Sua avó chamava o santo nome até quando o leite derramava. Achava que Deus não seria capaz de perdoar os seus inúmeros pecados. A culpa a perseguia desde criança e transformava-se em uma enorme sombra em sua vida. Sentia-se vigiada em todos os seus passos. Não conseguia esconder d´Ele suas desordens íntimas, seus caminhos tortos, suas inquietações e palpitações. Deus, secretamente, ria de seus temores. Para ela Deus era uma invenção do homem para controlar os outros homens e seus instintos primários. E sendo apenas uma invenção ela poderia acabar com Ele, expiando assim sua culpa. Trêmula de medo, a perplexa mulher fez o sinal da cruz e então matou Deus. Por sorte ninguém viu, a não ser Ele mesmo. Deu um aliviado suspiro de satisfação. Desde então passou a viver plenamente.

A viagem

Quando pisou pela primeira vez naquele lugar J. sentiu-se ofendida diante de tamanha beleza natural. Parecia que a natureza estava gritando com ela, lhe dando uma bronca. Ali estava só ela e Deus. Teve vontade de se desculpar com Ele. Mesmo sem saber quais eram os seus pecados. Lá os pensamentos falavam bem alto dentro da sua cabeça. Toda essa emoção deu até febre. Teve a sensação que estava desaprendendo as palavras. A natureza falava tão alto que acabou ficando não verbal. Podia um lugar dizer tanta coisa assim só com paisagem? Mesmo que sussurrando baixinho dentro do nosso ouvido como a brisa que sopra em direção ao mar? O mundo poderia existir tranquilamente sem ela. Foi assim que sentiu. A imensidão do mar espelhava a sua fragilidade. Sentiu medo e esperança misturados. Deu vontade de chorar. Lá só existia o momento presente.

As muitas Marias

Todos os dias as muitas Marias acordam cedo e pegam a condução para o trabalho. Uma delas acredita que terá um belo dia pela frente. Outra reclama do trânsito. Tem uma que oscila entre ficar otimista e desacreditar na vida. Todas elas vão à igreja juntas e rezam por dias melhores. Uma delas ainda acredita no amor. Outra já deixou de acreditar faz tempo. Tem uma que insiste em mudar de calçada quando aparece uma flor. Uma Maria vive reclamando, outra suspirando e a outra contemplando. Uma é filosófica, outra existencialista e a terceira racionalista: precisa ver para crer. Uma delas tem medo do escuro, outra de não ter dinheiro para pagar as contas. Outra Maria tem insônia. Uma Maria acredita em Deus, outra no diabo e a outra não acredita em nada. Uma Maria planeja, outra pragueja. A terceira se cala. Uma se cansa, outra se espanta, outra se rala. Uma delas tem tensão, a outra tem tesão. Uma Maria é só abstração... Eram muitas Marias que viviam dentro de uma. Tudo que a Maria queria é que elas chegassem a um acordo e aprendessem a ser felizes.

Brincando de Deus

V. gostava mesmo era de gente. Bichinhos, plantinhas não tinham tanto apelo assim para ela. Ela amava as pessoas e suas nuances, suas idiossincrasias, seus medos... Tinha vontade de colocar a humanidade inteira no colo. Sentia um desejo intimo de ser Deus. Ela amava até as pessoas que não conhecia ainda. Podia amar um desconhecido como amava a sua mãe. E talvez até com uma intensidade maior. Bastava esse desconhecido estar precisando dela. Queria poder dar de comer para aqueles que sentem fome e dar de beber para os que sentem sede. E se pudesse se ocupava só de pessoas e mais nada. Mas o trabalho dela com a humanidade não lhe pagava um salário e ela precisava saldar suas contas. Como era difícil se ocupar das pessoas e ainda ter contas à pagar. Seu desejo secreto era ser mãe do mundo inteiro. Mas sabia que precisava ter calma e ser, sobretudo, modesta. Não era possível brincar de Deus impunemente. Pagava um alto custo por isso: sentia todas as dores da humanidade – e mal tinha tempo para se ocupar com as suas. Cuidava do mundo inteiro, mas não havia ninguém para cuidar dela.

Cansada de viver

J. vivia cansada de viver. De acordar todo dia para a mesma vida. Até a sua felicidade lhe cansava. Não entendia qual era mesmo o sentido de existir. Queria poder viver outras vidas para variar. Perdia-se em si mesma e tornava a se encontrar. Para ela a vida era uma sucessão de dormir e acordar e de contas para pagar Colhia pequenas alegrias aqui e ali. E já virava um outro dia. Mais uma folhinha arrancada de sua existência nublada. Menos um para o fim.

De olhos bem abertos

Um dia Maria resolveu abrir os olhos para valer. Tanta coisa antes passara despercebida por ela. Um mundo inteirinho de acontecimentos que suas retinas distraídas não registravam. Tanta gente passara por ela sem deixar uma marca, sem causar uma impressão. A vida passara correndo por ela até então. Aprendia a estar mais atenta ao momento. Apreendê-lo e transformá-lo em grande. As pessoas que faziam parte da vida dela de maneira invisível ganhavam brilho inédito. A moça que arrumava a casa, e que já se acostumara a ser imperceptível, passava então a pertencer a ela também. Mais do que serviçal, era tão cheia de nuances e detalhes. Como não percebera antes? Sofreria, como se perdesse alguém da família, se ela resolvesse pedir demissão. Demolia, pouco a pouco, um muro invisível que existia entre ela e o resto do mundo. Ninguém mais passava despercebido para ela. Deixava-se então acumular de pessoas em sua vida. Sentia apreço por cada uma delas. Cada sorriso desconhecido despertava nela uma alegria inaudita. Dava trabalho ser assim e custaria muito sacrifício, mas ela não poderia mais voltar atrás.

De precipício em precipício

F. vivia pulando de precipício em precipício. Passava de uma tristeza para outra. Ela não queria ser feliz. Preferia o consistente desconsolo da tristeza a uma alegriazinha leviana. Mergulhava continuamente na possibilidade do drama. E enchia a sua existência de cinza. Perdia-se em suas divagações e vagava por aí com uma aparência assim meio vaga, meio triste. Em sua vida nublada não havia nesgas de sol. Quando alguma felicidade teimava em se manifestar tratava de lembrar-se de todas as suas dores, que andavam de mãos dadas com as dores da humanidade. O espetáculo do mundo arrepiava mais do que filme americano com efeitos especiais: tanta guerra, tanta miséria, tanta fome. Sem nenhum roteiro convincente. Realmente, ela não se convencia de que algo valia a pena: existir era um convite para sofrer.

Estreias

G. cultivava a doce sensação da estreia. Se pudesse estaria sempre inaugurando alguma coisa em sua vida. Usar um vestido pela primeira vez, escutar uma música inédita, experimentar uma comida, visitar uma cidade desconhecida... desde as estreias mais banais até as grandes estreias, todas tinham um sabor especial para ela. Colecionava estreias importantes: o primeiro beijo, a primeira vez que escutou o coração do seu filho, que viu o seu time jogar no estádio, o primeiro dia de aula no colégio. Ela nascia de novo quando vivia a emoção da estreia. Experimentar alguma coisa inédita era o prazer secreto dela. De estreia em estreia ia preenchendo os seus dias. Só riscava da folhinha os dias que lhe surpreendiam com uma inauguração. E a vida assim ia passando por ela. Um dia sabia que iria experimentar a novidade de não mais existir. Seria sua última, derradeira estreia.

Fiel companheira

Maria tinha uma companheira fiel, que andava de mãos dadas com ela desde os tempos mais remotos: a Culpa. Sarcástica: a proibia de alçar maiores voos, a fazia andar com os pés colados no chão e contradizia sua despretensiosa alegria. A Culpa ocupava o lugar do sonho tão almejado. Confundia-se com ela de tanto que elas se pareciam. Quase podiam ter o mesmo nome. Não sabia ao certo onde a queria levar. Sentia saudade de uma vida que não havia experimentado ainda – sem ela. Quase sempre fora culpada. Esse sentimento vinha só dela: sentia culpa por gozar, por gastar, por mentir, por falar a verdade... Um dia, farta de sua companhia indesejada, resolveu se livrar dela: cavou um buraco bem fundo e enterrou a Culpa, dando fim à sua agonia. Desde então passou a caminhar sozinha pelo mundo.

Homem-invisível

Existir é coisa para poucos. Grande parte das gentes inexiste. P. vive pelas beiradas, anda na contramão do mundo. Sonho pra ele só o de padaria, quando sobra alguns trocados. Nem durante o sono é capaz de sonhar. Os sonhos esquecem de aparecer pra ele à noite. Ele é todo feito de invisibilidades. Uma vez tentaram lhe tirar uma fotografia e por incrível que pareça não se viu nem sombra de gente. Até em foto teima em não aparecer. Ele vive sozinho em seu descaminho e desconhece o significado da palavra amor. Desconfia que esse negócio de amor só acontece mesmo com gente que existe de verdade. Uma vez viu uma moça tão bonita que o seu coração desandou a disparar. Bateu tão forte dentro da camisa que ele achou que ia enfartar. Tomou dois comprimidos e nunca mais voltou a pensar em amor. P. não teme a morte. Tem medo é da própria vida. E vive pedindo desculpas por existir. Presta deferência aos outros como se todos os outros fossem maiores do que ele. Sabe que sua morte será tão discreta quanto a sua (in)existência. Ele pretende se despedir da vida bem de mansinho, sem fazer muito alarde. Um dia ele simplesmente fecha o olho e não volta a abrir.

Menina do subúrbio

Onde vai, C. leva consigo a menina suburbana que foi um dia. Carrega com ela o subúrbio nos seus gestos, falas e anseios. Lá a vida passava devagarzinho. Todo mundo era vizinho. A alegria era mais escancarada. Não tinha medo de dar risada. O calor era de concreto. A África ficava mais perto. Da janela via desfilar uma cidade sem purpurina, sem o encanto do lado de cá. Por dentro, flores de plástico, santos no altar e a esperança, que não podia faltar. Quando atravessou o túnel pra do outro lado viver, ela desaprendeu que bastava só ser.

O medo

Maria sempre foi corajosa, mas era de tanto medo que sentia. Tinha medo que as coisas dessem errado e um medo maior ainda de que dessem certo. Só Deus era capaz de entender essa lógica. De que misteriosa matéria é feita a existência! Quanto mais o mundo a amedrontava, mais destemida ela se tornava. Estava sempre à espera de ser surpreendida pelo extraordinário. Era de frio na barriga que Maria vivia. Sentia o ar lhe faltar nos pulmões. Passava de um abismo a outro queimando de um prazer sofrido de viver. Sua vida era chama que ardia. Vivia ofegante de tanta suscetibilidade. Assombrava-lhe o medo da morte. Que só não era maior do que o medo da vida. Já tinha morrido de tantas mortes. Resistia a ter uma vida contida: sem arroubos nem estremecimentos. Temia, isto sim, era mergulhar no espaço oco da existência vazia.

O nascimento de uma mãe

Um dia T. acordou mãe. Deixou de ser só ela: era agora também aquele bebê embrulhado em um pacote, que já então fazia parte dela. A expressão de seu rosto ficou um pouco mais séria: nascia na imperturbável mulher uma fisionomia de mãe. Seu ar de menina de repente se escondia. O menino em seu colo a olhava com um olhar grave e indecifrável. Nem soube como conseguiu devolver, confusa que estava no papel materno, tão novo para ela. Chegou a sonhar com ele na sua primeira noite como mãe. A vida parou por um instante para que ela desvendasse o olhar. Por toda a existência sabe que vai carregar com ela esse primeiro encontro... Por mais que percorra lugares diferentes, viva emoções intensas, nada vai se comparar àquele olhar! T. carrega sempre com ela, desde o instante inaugurador, esse momento único, junto com outras coisas preciosas que coleciona: o dia em que virou mãe.

O renascimento de Maria

Nem alegre, nem triste. Assim era Maria. Um certo ar de leveza... Um pouco estúpida talvez. Ainda acreditava nas pessoas. Pobrezinha essa tal de Maria por acreditar assim nos outros. Dava-lhes tanto crédito. Por mais que o mundo parecesse absurdo, ela teimava em enxergá-lo cor-de-rosa. Sem ao menos sentir-se culpada por sua inocência. Às vezes a realidade gritava com ela. Nessas ocasiões ela voltava-se para dentro de si. Tornava-se uma habitante absoluta de si mesma. Procurava, mas não conseguia encontrar a raiva dentro dela. Queria poder gritar de volta, mas, nessa hora, sua voz emudecia. Não encontrava forças senão para brigar consigo mesma. E se castigar, se punir por acreditar tanto assim na humanidade. Estava cansada de tanto perdoar. Tentava aprender a odiar. Mas não existia ódio dentro dela. E se espantava com isso. Não era capaz de retrucar à hostilidade alheia. Tinha nascido sem a capacidade de sentir raiva. E por isso ficava sempre tão desprotegida. Sua humildade a martirizava. Sentia-se enfraquecer por não conseguir reagir. Era-lhe mais natural amar. Sempre fora mais fácil amar. Mesmo que esse amor não fosse retribuído. Amava mesmo que não a amassem de volta. Era capaz de ser tudo de que a acusassem. Só para agradar. Uma desesperança começou a tomar vulto dentro dela e foi aos pouquinhos crescendo. Foi, devagar, abrindo os olhos. E se assustava com a forte luz que entrava e a cegava. Essa visão era uma promessa de felicidade. Agora o mundo não lhe podia mais doer tanto. Tinha sido salva por sua desesperança.

O susto

Z. andava distraída pelo mundo quando foi surpreendida por um acontecimento. Tal acontecimento entrou pela janela em sua vida e a deixou escutando música de pássaros. Não podia traduzir em palavras aquela nova emoção. Só sabia sentir. Porque às vezes não existem palavras que caibam dentro de sentimentos. Sentia assim, sem nomes. E aquele sentimento, de tão inédito, lhe provocou um susto. No virar de uma esquina, ela deu de cara com o amor. No meio do caminho da vida. Pela primeira vez ela podia ser ela mesma, sem disfarces, e alguém gostava dela assim mesmo: com todas as suas idiossincrasias, com todas as suas manias imperfeitas, todos os seus medos e fantasmas que vinham de longe. Ela não podia fazer mais nada a não ser retribuir esse amor. Já não tinha outra escolha. Tinha sido escolhida.

O último caramelo

Quando pequena, a mãe comprava balas de caramelo para N. Ela sempre guardava a última bala porque ficava com pena de acabar. Tem coisas na vida que se parecem como essa última bala: ela quer guardar porque tem pena que acabe. Algumas vezes o último caramelo estragava e ela acabava não comendo. Assim era a vida... Os momentos de alegria eram como uma fotografia que tirara em um dia de sol no Zoológico. Aquele momento, apreendido por ela, nunca mais voltaria. O decorrer da vida era como um rio caudaloso: as águas que se moviam nunca eram as mesmas. Em momentos de grande diversão sempre lembrava que aquele instante iria acabar e a vida voltaria à sua normalidade. Ela tentava agarrar o momento, mas ele escorria por suas mãos. Como fazem todos os momentos. O fim da festa, o último minuto do dia do aniversário, a quarta-feira de cinzas lhe traziam um grande aperto na alma. A normalidade da vida não lhe interessava. Para ela todos os dias deveriam ser sábado de carnaval.

Ovelha negra

N. não queria dar trabalho. Só queria poder ser ela mesma. Mas ser ela mesma dava muito trabalho. Principalmente para ela. Viver sem grandes questionamentos era o seu verdadeiro objetivo. Mas sabia que esperavam dela um determinado comportamento. Só que ela não sabia ser como os outros queriam. Até tentava, às vezes, só pra agradar. E quem ficava desagradada era ela mesma. Vivia se perguntando: por que será que as pessoas teimam em encaixotar as outras? A gente não pode simplesmente ser e pronto? Despretensiosamente... Precisa sempre ter que agradar a todo mundo sendo o que acham que deveríamos ser? Ficava sem jeito de insistir em ser assim do jeito dela. Queriam tanto que ela fosse como os outros – como se precisasse seguir um modelo. Acabava ficando meio dividida. E não conseguia ser uma coisa nem outra. Foi se encolhendo até ficar bem pequenininha. Tão pequena que já não cabia mais dentro dela.

Pra que serve existir?

F. vive tentando encontrar um motivo para a existência. Afinal, para que serve existir? O que a gente ganha com isso? Procura aqui e ali, mas não encontra nenhuma resposta. Um abraço apertado, um olhar encontrado, uma inesperada risada... são pequenos prazeres que ela coleciona para aliviar a tensão de viver. Sofre de insatisfação crônica a coitada. Quando está aqui, quer estar lá; e quando chega lá, quer voltar. Dentro dela é o lugar mais difícil de morar.

Segunda-feira

Segunda-feira, dia 10, Maria sacoleja em um ônibus cheio às 7h da manhã. Muitas horas depois estará voltando para casa, exausta. E no dia seguinte fará o caminho de ida e de volta novamente. O chefe gritará com ela nessa segunda e na terça também. “Desculpe qualquer coisa”, ela repete baixinho. Para ele e para o resto do mundo. Quando chegar em casa, o marido vai estar bêbado e baterá nela se o seu time tiver perdido. Acostumou-se a apanhar do marido como apanhara do pai em sua infância. Depois de servi-lo e lavar a louça do jantar, ela se deita e na terça começa tudo de novo. Assim é a vida de Maria. Vidinha medíocre, sim senhor. A alegria não conhece não. Mas se esforça para não perder de vista a esperança. Gosta de manter a fé ao seu alcance. Espera que a felicidade um dia a pegue pela mão e a leve para um passeio. Quando nasceu, Deus soprou em seu ouvido: “vai ser infeliz na vida”. Obedecia-O, tão humilde ela era. Obedecia-O de puro medo de conhecer a tal da desconhecida felicidade. E por não conhecê-la, morria aos pouquinhos. Desde pequena estava acostumada a morrer. Sua vida era bofetada na cara: do seu pai, do marido e de Deus.

Viver sem delicadeza

De repente Maria se deu conta que a vida passava depressa por ela. A delicadeza, que tanto cultivava, ficava em segundo plano. Estava exausta de sentir o coração acelerado. Desejava minutos de sobra para largar um pouquinho o mundo e se ocupar com ela mesma. Queria poder guardar as horas só para si. Ir passando o tempo de mansinho, sem os atropelos que lhe roubavam a alma. Sem precisar consultar o relógio a cada momento. A vida dela não cabia mais nessa estreiteza. Seu desejo secreto era ser dona do próprio tempo. Existir além das obrigações do dia a dia. Buscava a intangível alegria da época da infância. Maravilhar-se e assombrar-se como acontecia na meninice, quando tudo parecia mais cintilante. A luta atroz pela sobrevivência a esgotava. Sentia que a sutileza definhava nesse mundo tão veloz. Estava faminta de liberdade, sedenta de vida larga. Não queria mais pagar o alto preço que lhe custava viver sem delicadeza.

Zzz

Tem gente que vive sonhando acordada. M. gosta mesmo é de sonhar dormindo. Sonhos tecidos pela sua inesgotável imaginação. Ela pode viver várias vidas sonhando. E os sonhos são tão intensos – e prazerosos – que ela não quer saber de acordar. E quando não tem mais jeito de continuar dormindo, levanta-se exausta de tanto sonhar. Seu travesseiro tem um bocado de história pra contar. Ela vive confundindo o que sonha à noite com a vida que acontece do lado de fora do sonho. Despertar pra ela é quase um pesadelo. Às vezes lá no fundo do seu sono escuta o despertador tocar e pensa que ainda falta muito sonho para ela acordar. Nos seus sonhos ela inventa um mundo inteirinho. Bem do jeito dela. E os seus desejos mais secretos se realizam quando ela está dormindo. M. também sonha de olho aberto. Quando vive uma outra natureza de sonho. E a matéria desse sonho é toda feita de ilusões. Ela enxerga a vida através da lente da imaginação: coleciona recortes de jornal com boas notícias, inventa soluções para os problemas do mundo e vive declamando sua alegricidade. É inadvertidamente feliz. Se tropeça em algum grande desafio, endireita os óculos cor de rosa, sacode a poeira da melancolia e segue em frente. Do lado de cá do sonho, ela cultiva pequenos e inocentes prazeres como atrasar o relógio pra vida passar mais devagar, andar na rua como se fosse personagem de um filme de antigamente e escutar conversas particulares como se fosse invisível. Mas a realidade não é tão sonhável assim. Nem sempre é bom existir fora da cama. Viver custa tanta alegria que às vezes ela levanta com vontade de pular o dia. Sua felicidade a desampara e ela volta a se refugiar no sonho sonhado à noite.

Eles

Ela saiu despretensiosa de casa. Sofria de TPM e com o final de um amor (ou teria sido uma ilusão?). Se encontraram em uma festa na favela. Estavam os dois um pouco altos. Ele reparou nela. Ela devolveu o olhar. Para puxar assunto ele perguntou se ela era alemã. Muitas línguas diferentes eram faladas naquela festa e ele resolveu arriscar. Ela estranhou a pergunta, mas resolveu ser simpática. Logo ficaram sem assunto e ela resolveu chamá-lo para dançar. Descobriram que moravam na mesma rua. Subitamente ela se lembrou que teria uma aula no dia seguinte e resolveu ir embora. Ele decidiu ir junto. Racharam uma moto-táxi. Ideia dela: queria ver a cidade do alto sentindo o vento em seu rosto. Ele ficou apavorado com medo de cair. Ele pediu o telefone dela. Ela perguntou se ele realmente iria ligar. Ele respondeu que ligaria todos os dias e ela achou a resposta meio cínica, mas resolver dar assim mesmo. Se falaram no dia seguinte e em todos os outros que se seguiram. Ela não sabia por que gostava tanto assim dele, mas a certeza de ser amada a confortava. De repente as coisas pareciam se encaixar e fazer sentido. Era como tirar a figurinha que estava faltando para completar o álbum. A solidão, que eles cultivavam e temiam ao mesmo tempo, deu lugar ao encontro. Esse parece o final da história, mas é só o começo. Eles ainda vão chorar e rir juntos, vão se odiar e depois voltar a se amar. Vão sentir ciúmes, medo de rejeição... Vão esperar que saibam cuidar um do outro, que o amor dure e que a incerteza seja apenas um fato risível.