quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A boba

Era bem assim - com um vestido de algodão leve e um sorriso impossível de disfarçar que J. caminhava pelo mundo. Seu bom humor fazia brilharem todos os dentes. Não sorria amarelo e nem com o canto da boca. Sua alegria entrevia-se inteira. Ela plantava contentamentos aqui e ali. Aprendeu a duras penas a não levar a vida tão a sério. Quando descobriu o quanto era bom rir de si mesma passou a ser uma das raras pessoas felizes do planeta. Para o mundo se fingia de séria. Não podia deixar que a confundissem com uma inocente, e a tentassem fazer de boba. Leve daquele jeito, só mesmo para os íntimos. Para aqueles que sabiam que sua bobice tinha, na verdade, muita sabedoria. Ainda que a vida lhe impusesse algum calafrio, medos inevitáveis, rir era a sua estratégia para se defender do mundo. Desse mundo tão sem graça... Seu sorriso escancarado era a grande e definitiva arma encontrada. Boba? Estava era salva!

A estrangeira

F. mora em seu próprio exílio. Ela vive do lado de dentro. É a solidão feita de gente. A vida passa e ela assiste da arquibancada. Vida dela tão vazia que parece um estádio depois de jogo de segunda divisão. Para passar o tempo ela coleciona cartões-postais dos lugares -tão bonitos - que nunca visitou, chora com os tristes fados que tocam na vitrola que era do avô, vive histórias de amor através das novelas que passam na TV e assiste a vida dos vizinhos pela janela, que ela abre só um pouquinho. Vai que em um descuido ao escancará-la, alguém resolve olhar para a dela? Vida essa que ela gasta tão pouco. Talvez esteja economizando para uma próxima... Ela tem mania de se confundir com os personagens dos filmes que assiste. Sente gozos e tormentos através dos Joões e Marias que vivem nos livros de sua prateleira, alimentando assim sua pouca fome de vida. Os filhos dos vizinhos crescem, casais de namorados se formam e se desfazem, o céu muda do azul para o cinza e F. não sai da janela. Não há soluções para o seu vazio: ela perdeu o último trem. Chegou atrasada para a própria vida.

A falta que ela faz

Aquela moça sentia uma falta aguda que lhe martelava o peito. Sentia falta dela mesma. Como um segredo bem guardado, se guardava do mundo. Escondia-se de tal modo que era capaz de nem se lembrar mais quem ela era. Esse segredo emprestava-lhe uma incongruente segurança. Possuía uma aparência era perturbadora: olhos oblíquos ligeiramente estrábicos, que se recusavam a olhar diretamente nos olhos das outras pessoas, e maçãs salientes, que coravam com facilidade. No porta-retrato da sala de estar os olhos verdes saltavam à vista das visitas. Aquela não era parecida com ela. Na foto ela não tinha segredos tão insondáveis. Parecia até serena. Mas seu espírito era tempestuoso. Aquela fotografia não era capaz de capturar toda a dramaticidade da sua vida. Fingia ser parecida com a maioria das pessoas. Afinal não se pode ser diferente impunemente. Não seria tão despudorada assim. Disfarçava seu desmedido desconsolo. Vagava pela vida carregando-se de estranhamento e solidão, sofrendo emoções que ainda não tinham nome. Sentia imensa saudade de si, mas tal saudade era sublimada pelo pudor de mostrar para o mundo quem ela verdadeiramente era. O tempo todo para ela faltava...ela!

A mãe e seu filho

O filho achava que a mãe tinha resposta para todas as perguntas. Afinal para ser mãe era preciso ter todas as respostas. Mal sabia que era ele quem lhe ensinava. A mãe se renovava nele. Ele mostrava a ela como ser mãe. Descobria que ser mãe era sentir dor e alegria ao mesmo tempo. Ela precisava ajudá-lo a aprender a andar de bicicleta. E ele deveria lhe segredar a sua espontaneidade tão natural. Iam bordando suas existências entrelaçadas. De uma hora para a outra o filho cresceu. Sem aviso-prévio. Um dia foi dormir criança e no outro acordou adolescente. A mãe já não podia entrar no seu quarto sem bater. O menino, que conservava uma certa timidez, se tornou um jovem exibido. Ansiava por atender a todos os chamados da urgente adolescência. Tinha pressa em viver. Queria estar em todos os lugares ao mesmo tempo. A primeira espinha, o primeiro trago, o primeiro amor... A primeira mentira desmascarada. Jurava por Deus que não se repetiria para tornar a mentir mais uma vez. Vivia um tempo de estreias: beijar era novidade, beber era novidade, transar era novidade... A vida adulta se descortinava para ele. A mãe experimentava mais uma vez a juventude deixada há tempos para trás e secretamente perdoava os deslizes do filho. O bordado ganhava cores novas.

A mulher com um buraco no meio

A felicidade para ela era apenas uma vaga promessa. Uma vã ilusão. Vivia à procura de pequenas alegrias. Mas tinha nascido fadada à melancolia. Havia um enorme vazio dentro de si. Passava a vida tentando preencher esse vazio. Mas era um buraco sem fundo. Algumas vezes chegou perto de encontrar satisfação. Todavia quanto mais perto chegava, mais a satisfação lhe escapava. Era intangível e inatingível essa tal da felicidade. Ficava boba de ver como os outros encontravam contentamento em pequenas coisas. A melancolia era sua mais constante companheira. E por já tão conhecida sentia-se protegida por ela. A alegria a assustava muito mais. Era-lhe irrepreensível. Temia arriscar tanto por um bocado de contentamento. A busca pela satisfação tornou-se um vício que esvanecia aos pouquinhos. Essa agitação íntima trazida pela felicidade a deixava insegura. Nunca mais tinha sido tão feliz quanto fora na infância, quando as alegrias eram gratuitas e o peso da vida ainda não se fazia presente.

A mulher que matou Deus

Desde pequena a mulher escutava as mesmas ladainhas: “Deus está vendo tudo que você está fazendo”, “seja uma menina comportada senão Deus castiga”, Deus isso, Deus aquilo... Fora criada em uma família católica, apostólica, romana. Sua avó chamava o santo nome até quando o leite derramava. Achava que Deus não seria capaz de perdoar os seus inúmeros pecados. A culpa a perseguia desde criança e transformava-se em uma enorme sombra em sua vida. Sentia-se vigiada em todos os seus passos. Não conseguia esconder d´Ele suas desordens íntimas, seus caminhos tortos, suas inquietações e palpitações. Deus, secretamente, ria de seus temores. Para ela Deus era uma invenção do homem para controlar os outros homens e seus instintos primários. E sendo apenas uma invenção ela poderia acabar com Ele, expiando assim sua culpa. Trêmula de medo, a perplexa mulher fez o sinal da cruz e então matou Deus. Por sorte ninguém viu, a não ser Ele mesmo. Deu um aliviado suspiro de satisfação. Desde então passou a viver plenamente.

A viagem

Quando pisou pela primeira vez naquele lugar J. sentiu-se ofendida diante de tamanha beleza natural. Parecia que a natureza estava gritando com ela, lhe dando uma bronca. Ali estava só ela e Deus. Teve vontade de se desculpar com Ele. Mesmo sem saber quais eram os seus pecados. Lá os pensamentos falavam bem alto dentro da sua cabeça. Toda essa emoção deu até febre. Teve a sensação que estava desaprendendo as palavras. A natureza falava tão alto que acabou ficando não verbal. Podia um lugar dizer tanta coisa assim só com paisagem? Mesmo que sussurrando baixinho dentro do nosso ouvido como a brisa que sopra em direção ao mar? O mundo poderia existir tranquilamente sem ela. Foi assim que sentiu. A imensidão do mar espelhava a sua fragilidade. Sentiu medo e esperança misturados. Deu vontade de chorar. Lá só existia o momento presente.